Juros e Seu Papel na Economia e na Vida

Uma visão islâmica do papel dos juros na sociedade hoje, com um estudo histórico e contemporâneo. Parte 1: Por que os muçulmanos implementaram a proibição dos juros em face do apelo dos secularistas cristãos e judeus por sua legalização.

Juros e Seu Papel na Economia e na Vida

(parte 1 de 8): Introdução

Introdução

Os juros são definidos no Dicionário Oxford de Inglês como “dinheiro pago para o uso de dinheiro emprestado (o principal) ou para ter paciência com um débito, de acordo com uma taxa prefixada.” [1]

De fato, os indivíduos e o mundo como um todo provavelmente sabem muito bem o peso dos juros, de modo que ninguém realmente precisa da definição acima. Os juros são conhecidos por qualquer um que viva em um país capitalista. Tornaram-se completamente institucionalizados e aceitos nas economias modernas, de modo que é quase impossível conceber que exista alguém que se oponha completamente a eles e recuse quaisquer transações que envolvam juros. Mas existem muçulmanos devotos que se recusam a lidar com juros.

A razão real de os muçulmanos não lidarem com juros é que lhes é proibido pela religião islâmica, como veremos de forma detalhada mais adiante. Ao mesmo tempo, os muçulmanos acreditam que a orientação do Alcorão é baseada em Seu conhecimento, sabedoria e justiça. Em outras palavras, Deus não proíbe algo aos humanos sem haver alguma razão. Sendo assim, definitivamente existem razões sólidas – algumas das quais somos capazes de reconhecer claramente – pelas quais Deus proibiu essa prática.

No mundo de hoje os muçulmanos são bombardeados constantemente com argumentos a favor dos juros. Muitos muçulmanos sucumbiram a essa pressão e argumentos supostamente racionais que os levaram a aceitar o conceito de juros.

Consequentemente, esse artigo tem a intenção de discutir a posição islâmica sobre os juros com suporte nos textos básicos da fé e também entrar em uma discussão racional sobre os juros, para determinar se os argumentos dados a favor deles são verdadeiramente válidos.

Orientação de Deus para a Humanidade

O Islã ensina que Deus proveu orientação de forma misericordiosa para a humanidade em todos os aspectos da vida. Essa orientação não cobre apenas os atos de adoração, mas tudo desde economia e ética empresarial a relações conjugais, internacionais, éticas de guerra e assim por diante. Uma das características que distingue os muçulmanos de hoje é que continuam a acreditar nessa orientação de Deus, enquanto que muitos a descartaram ou deixam de lado seus ensinamentos religiosos quando se trata de assuntos “seculares”.

Existe um grande número de razões para muitos muçulmanos não terem seguido o mesmo caminho que, por exemplo, vários judeus e cristãos seculares seguiram. Uma das razões mais importantes é que o muçulmano pode confiar que a revelação que forma a base da religião islâmica não foi manipulada ou distorcida desde a época de sua revelação. Em outras palavras, não houve interferência ou distorção humanas na revelação. Assim, não existe necessidade dos humanos agora corrigirem os erros dos humanos primitivos, como os judeus ou cristãos seculares argumentariam. De fato, o único resultado para os muçulmanos seria os humanos, por sua interferência, prejudicarem a revelação que veio de Deus.

Segundo, muitos muçulmanos acreditam que não lhes foi apresentada qualquer evidência forte ou convincente de que de alguma forma sua religião não está em contato com a realidade ou é impraticável em tempos modernos. No Islã, por exemplo, nunca houve conflito entre religião e ciência, que levou a uma ruptura de confiança na igreja e uma virtual revolta contra a autoridade da religião como experimentado no Ocidente.[2] Muitas pessoas, até alguns muçulmanos, têm clamado por muitas mudanças dentro do Islã, mas na realidade os argumentos que têm apresentados são falhos e inconsistentes, para dizer o mínimo.  O caso dos juros, tópico desse artigo, pode ser tomado como um excelente exemplo dessa natureza.

Interessantemente, embora o Islã esteja na mídia com muita frequência ultimamente, a experiência desse autor é que muitos não-muçulmanos não estão cientes da posição do Islã em relação aos juros. Assim, esse artigo lança luz sobre esse tópico importante – um tópico que não é um tópico “medieval” obsoleto, mas um que tem extrema relevância para o mundo hoje.

 

 


Footnotes:

[1] Oxford English Dictionary Software (Oxford, Inglaterra: Oxford University Press, 2002), entrada, “interest (juros).”

[2] Um trabalho clássico sobre a história da experiência cristã/européia com relação ao conflito entre religião e ciência é History of the Conflict between Religion and Science (“História do Conflito entre Religião e Ciência”) de John William Draper (Order of Thelemic Knights, 2005). Note que esse título deve ser corrigido, uma vez que é a história do conflito entre ciência e Cristianismo na Europa. Em seu trabalho, A History of the Intellectual Development of Europe(“Uma História do Desenvolvimento Intelectual da Europa”, em tradução livre) (Honolulu, Havaí: University Press of the Pacific, 2002), o mesmo John William Draper divide a história da Europa em idade da fé seguida pela idade da razão, destacando mais uma vez o conflito que existe no Cristianismo em particular (mas também no Judaísmo), com “razão” e “ciência” vis-à-vis “fé.” O Islã nunca experimentou essa crise. De fato, a consistência do Islã com a ciência moderna é algo que na verdade atraiu muitos convertidos ao Islã. Por exemplo, um professor não-muçulmano, Prof. Tejatat Tejasen da Universidade Chiang Mai na Tailândia, estudou a relação entre o Islã e a ciência moderna e finalmente declarou o seguinte:

“Durante os últimos três anos me interessei pelo Alcorão… A partir de meu estudo… acredito que tudo que foi registrado no Alcorão quatorze séculos atrás deve ser verdade, que pode ser provada por meios científicos. Uma vez que o Profeta Muhammad não podia ler e nem escrever, Muhammad deve ser um mensageiro que transmitiu essa verdade, que lhe foi revelada como uma iluminação por aquele que é elegível [como o] criador... Consequentemente, acho que esse é o momento de dizer… [nesse ponto o Prof. Tejasen faz o testemunho da fé islâmica].” [Citado de I. A. Ibrahim, A Brief Illustrated Guide to Understanding Islam (Um Breve Guia Ilustrado para Entender o Islã) (Houston: Darussalam, 1997), p. 31.

Esse trabalho, na íntegra, está disponível em www.islam-guide.com. Ibrahim revê e resume as conclusões de muitos cientistas contemporâneos.]

(parte 2 de 8): A Posição Islâmica

Os Textos Islâmicos sobre Juros

Quando se lê os textos islâmicos relacionados aos juros, imediatamente percebe-se o quanto os alertas contra qualquer envolvimento com juros são rigorosos. O Islã proíbe vários atos imorais como fornicação, adultério, homossexualidade, consumo de álcool e assassinato. Mas a variedade de discussão e extensão dos alertas para esses outros atos não está no mesmo nível daqueles relacionados aos juros. Isso fez com que Sayyid Qutub escrevesse: “Nenhum outro assunto foi condenado e denunciado tão fortemente no Alcorão quanto a usura.” [1]

O Alcorão, por exemplo, contém os seguintes versículos relacionados aos juros[2]:

“Ó crentes, não exerçais a usura, multiplicando (o emprestado) e temei a Deus para que prospereis, E guardai-vos do Fogo, que é preparado para os descrentes.” (Alcorão 3:130-131)

Esse é um alerta muito forte para os crentes sobre uma consequência fatal: serem jogados no fogo do inferno preparado para os descrentes.

Deus também diz:

“Os que praticam a usura só serão ressuscitados como aquele que foi perturbado por Satanás; isso, porque disseram que a usura é o mesmo que o comércio; no entanto, Deus consente o comércio e veda a usura. Mas, quem tiver recebido uma exortação do seu Senhor e se abstiver, será absolvido pelo passado, e seu julgamento só caberá a Deus. Por outro lado, aqueles que reincidirem, serão condenados ao inferno, onde permanecerão eternamente. Deus abomina a usura e multiplica a recompensa aos caritativos; Ele não aprecia nenhum descrente pecador.” (Alcorão 2:275-276)

Esses versículos têm muitos pontos interessantes.  Ao comentar sobre a primeira parte desse versículo, Maududi escreveu:

Assim como uma pessoa insana, sem limites fornecidos pela razão, recorre a todos os tipos de atos imoderados, faz aquele que lida com juros. Persegue sua busca por dinheiro como se fosse insano. Indiferente ao fato de que os juros retiram as raízes do amor humano, da fraternidade e empatia, mina o bem-estar e felicidade da sociedade humana e seu enriquecimento é à custa do bem-estar de muitos outros seres humanos. Esse é o estado de sua “insanidade” nesse mundo: uma vez que um homem ressuscitará na Vida Eterna no mesmo estado no qual morreu nesse mundo presente, será ressuscitado como um lunático.[3]

Em segundo lugar, o versículo deixa claro que existe uma diferença entre transações comerciais legítimas e juros. A diferença entre elas é tão gritante que o versículo não se ocupa de explicá-las, o que é um dos aspectos estilísticos do Alcorão. Em terceiro lugar, os versículos afirmam claramente que Deus“abomina a usura e multiplica a recompensa aos caritativos.” Essa é uma das “leis” de Deus que a humanidade não pode necessariamente descobrir por conta própria. Os efeitos negativos plenos e finais dos juros sobre o indivíduo, comunidade e o mundo como um todo tanto nessa vida quanto na Vida Eterna são conhecidos apenas por Deus. Entretanto, um olhar sobre alguns desses aspectos negativos, que testemunham a verdade desse versículo, serão fornecidos mais tarde nesse artigo. De fato, talvez para destacar o significado desse versículo, o Profeta (que a paz e bênçãos de Deus estejam sobre ele) também disse: “Juros – mesmo em grande quantidade – no final resultarão em uma pequena quantidade.”[4] Sem dúvida, na Vida Eterna quando o indivíduo se encontra com Deus, tudo que acumulou através de meios ilícitos será fonte de sua própria destruição.

Pouco depois dos versículos acima, Deus diz ainda:

“Ó vós que credes, temei a Deus e abandonai o que ainda vos resta da usura, se sois crentes! Mas, se tal acatardes, esperai a hostilidade de Deus e do Seu Mensageiro; porém, se vos arrependerdes, reavereis apenas o vosso capital. Não defraudeis e não sereis defraudados.” (Alcorão 2:278-279)

Quem em pleno juízo se exporia a uma declaração de guerra de Deus e Seu Mensageiro? Sem dúvida, dificilmente se encontrará uma ameaça mais forte. No fim do versículo Deus deixa claro por que os juros são proibidos: é prejudicial. A palavra árabe para isso é dhulm, significando uma pessoa que prejudicou, causou dano ou oprimiu outra pessoa ou sua própria alma. Esse versículo demonstra que os juros não são proibidos simplesmente devido a algum mandamento de Deus sem qualquer racionalidade por trás desse mandamento. Os juros são definitivamente prejudiciais e, portanto, foram proibidos.

Além dos versículos do Alcorão, o Profeta Muhammad (que a paz e bênçãos de Deus estejam sobre ele) também fez declarações relacionadas aos juros. A declaração a seguir, por exemplo, demonstra claramente a gravidade dessa ação:

“Evite os sete pecados destrutivos: associar parceiros a Deus, magia, matar uma alma que Deus proibiu - exceto através do devido curso legal, juros, consumir a riqueza dos órfãos, fugir quando dois exércitos se encontrarem, caluniar as mulheres castas, crentes e inocentes.” (al-Bukhari e Muslim)

De fato, outra declaração do Profeta (que a paz e bênçãos de Allah estejam sobre ele) deve ser suficiente para manter qualquer indivíduo temente a Deus completamente longe dos juros. O Profeta (que a paz e bênçãos de Allah estejam sobre ele) disse:

“Uma moeda dos juros consumida conscientemente por uma pessoa é pior aos olhos de Deus do que trinta e seis atos de relação sexual ilícita.” (al-Tabarani e al-Hakim)

O companheiro Jabir narrou que o Mensageiro de Deus (que a paz e as bênçãos de Deus estejam sobre ele) amaldiçoou quem cobra juros, quem paga juros, a testemunha [ou seja, os contratos que incluem juros] e quem o registra. Então ele disse: “São todos iguais.” (Muslim)

Esse é um princípio básico do Islã. Se algo é proibido e errado, um muçulmano não pode participar ou dar apoio de forma alguma. Assim, se juros são proibidos, também é proibido ser testemunha desses contratos, registrá-los e assim por diante. As palavras do Profeta também explicam que não existe diferença entre aquele que paga juros e aquele que os cobra. Ambos se envolveram em uma prática desprezível e, portanto, são igualmente culpados.

O Profeta Muhammad (que a paz e bênçãos de Allah estejam sobre ele) também disse:

“Se relações sexuais ilícitas e juros aparecerem abertamente em uma cidade, eles se abriram para a punição de Deus.” (al-Tabarani e al-Hakim)

Essa afirmação é uma referência à uma das “leis sociais” de Deus.” A punição de Deus pode vir em diferentes formas nesse mundo ou no próximo.

 

 


Footnotes:

[1] Sayyid Qutb, In the Shade of the Quran (“À Sombra do Alcorão”, em tradução livre) (Markfield, Leicester, Inglaterra: The Islamic Foundation, 1999), vol. 1, p. 355.

[2] A palavra árabe usada nesses versículos do Alcorão é ribaaRibaa pode ser definido como, “um excesso e um acréscimo; um acréscimo sobre a quantia principal [que é emprestada ou despendida].” Cf., E. W. Lane, Arabic-English Lexicon (Cambridge, Inglaterra: The Islamic Texts Society, 1984), vol. 1, 1023. Infelizmente, alguns tradutores do Alcorão (incluindo Abdullah Yusuf Ali, Khan e al-Hilali, e Pickthall) optaram em traduzir a palavra ribaa como “usura.” Isso gerou um pouco de confusão, até entre os muçulmanos ocidentais. O Dicionário Oxford de inglês define usura como: “o fato ou prática de emprestar dinheiro a juros; especialmente no uso mais recente, a prática de cobrar, tomar ou contratar para receber taxas excessivas ou ilegais de juros por dinheiro emprestado.” Em outras palavras, em uma época, a palavra “usura” era equivalente ao ato de emprestar dinheiro a juros, quando esse ainda era um ato considerado desprezível. Depois que os juros se tornaram completamente legais a palavra usura passou a significar “emprestar dinheiro a taxas excessivas ou ilegais.” O termo áraberibaa, em termos contemporâneos, deve ser traduzido como “juro”, uma vez que inclui qualquer pagamento feito além do principal.

[3] Sayyid Abu Ala Mawdudi, Towards Understanding the Quran (“Entendendo o Alcorão”, em tradução livre) (Leicester, Reino Unido: The Islamic Foundation, 1988), vol. 1, p. 213.

[4] Registrado por al-Hakim. Ver al-Albani, Sahih al-Jami al-Sagheer, vol. 1, p. 664, hadith no. 3543. Juros têm tudo a ver com acumular mais dinheiro, sem colocar o dinheiro em risco. Isso, a longo prazo, entretanto, não necessariamente traz felicidade: “Estudo da General Social Survey (GSS) apresentado na Business Week (16 de Outubro de 2000) concluiu que dinheiro não estava comprando felicidade e o novo estilo de vida e seus impactos estavam causando aumento de infelicidade. De acordo com esse estudo, embora houvesse um aumento per capita na renda entre 1970 e 1998, os americanos, ao contrário, estavam menos felizes. As novas tendências sociais ofuscavam quaisquer ganhos materiais. O estudo descobriu que embora renda extra traga felicidade extra, o impacto era surpreendentemente baixo. Também descobriu que fatores como gênero e condição material pesavam mais. Outra descoberta foi que as mulheres estão ficando mais infelizes que os homens. O aumento no divórcio e separação está tendo um impacto negativo sobre a estrutura familiar e a psicologia de seus membros. A Business Week concluiu: ‘Isso sugere, no mínimo, que aqueles que pensam que apenas ganhos nos rendimentos garantem mais felicidade estão se iludindo. Significa que alguns aspectos aparentes da nova economia, como aumento no desemprego e maior desigualdade de renda, carregam custos psicológicos significativos.’” Abdulhay Y. Zalloum, Painting Islam as the New Enemy: Globalization & Capitalism in Crisis (“Pintando o Islã como o Novo Inimigo: Globalização & Capitalismo em Crise”, em tradução livre) (Technology One Group S.A. 2002), p. 357.

(parte 3 de 8): Religião e os Primeiros Pensadores

O Islã, claro, não é a única religião que baniu os juros e os considerou uma prática desprezível. A proibição dos juros – pelo menos até certo ponto – é bem conhecida tanto no Velho quanto no Novo Testamento da Bíblia. Em vários lugares no Velho Testamento são feitas referências à “usura” ou “juros”. (Novamente, usura e juros costumavam ser equivalentes, mas com o passar do tempo usura passou a significar quantia exorbitante ou ilegal de juros. Assim, como será destacado abaixo, a American Standard Version da Bíblia repetidamente alterou na Versão do Rei James usura para juros).

Deuteronômio 23:19-20 diz:

“Não emprestarás com usura a teu irmão nem dinheiro, nem grão, nem outra qualquer coisa que seja, mas somente ao estrangeiro. A teu irmão porém emprestarás o que ele houver mister, sem daí tirares algum interesse, para que o Senhor teu Deus te abençoe em tudo o que fizeres na terra, em cuja posse estás para entrar.” (Versão do Rei Jaime).[1]

Da mesma forma, Êxodo 22:25 afirma:

“Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo, não te haverás com ele como credor; não lhe imporás juros.” (Versão do Rei Jaime).

Em Levítico 25:37 se lê:

“Não lhe darás teu dinheiro a juros, nem os teus víveres por lucro.” (Versão do Rei Jaime).

Em Jeremias 15:10, o profeta reclama de estar sendo amaldiçoado embora nunca tenha feito nada como cobrar juros, significando que essas maldições seriam apropriadas para ele se fosse alguém que cobrasse juros. Talvez um dos versos mais duros no Velho Testamento com relação aos juros seja Ezequiel 18:13:

“Empreste com usura, e receba mais do que emprestou; porventura viverá ele? Não viverá! Todas estas abominações, ele as praticou; certamente morrerá; o seu sangue será sobre ele.”

Existem ainda outros versos do Velho Testamento que indicam a proibição de juros, mas o que foi apresentado acima deve ser suficiente.[2] O Dicionário Bíblico de Easton resumiu a Lei Mosaica com relação a juros na seguinte passagem:

A Lei Mosaica exigia que quando um israelita precisasse tomar emprestado, o que pedisse fosse emprestado a ele e nenhum juro devia ser cobrado, embora os juros pudessem ser cobrados de um estrangeiro (Êxodo 22:25; Deuteronômio 23:19-20; Levítico 25:35-38). No fim de sete anos todos os débitos eram perdoados. Entretanto, de um estrangeiro o empréstimo podia ser cobrado. Em um período posterior da comunidade hebraica, quando o comércio aumentou, a prática da usura ou cobrança de juros sobre empréstimos, e de fiança no sentido comercial, cresceu. Ainda assim a sua cobrança de um hebreu era considerada vergonhosa (Salmos 15:5; Provérbios 6:1,4; 11:15; 17:18; 20:16; 27:13; Jeremias 15:10).

Infelizmente, como é o caso em questões práticas, o Novo Testamento é de certa forma vago sobre os juros. De acordo com The Encyclopedia of Religion and Ethics (Enciclopédia de Religião e Ética, em tradução livre), “não existem preceitos diretos [relacionados aos juros] para orientar a consciência cristã.” [3]Entretanto, nos ensinamentos atribuídos a Jesus no Novo Testamento, existem algumas passagens que parecem ser claramente contra a prática de juros. Em uma passagem, relata-se que Jesus disse:

“Amai, porém a vossos inimigos, fazei bem e emprestai, nunca desanimado; e grande será a vossa recompensa, e sereis filhos do Altíssimo; porque ele é benigno até para com os integrantes e maus.” (Lucas 6:35).

Nessa passagem é dito aos cristãos para emprestarem dinheiro sem esperar receber o principal novamente. Essa pode ser considerada um dos “ditos difíceis” e, como é bem conhecido, os sábios cristãos diferem em como essas passagens devem ser interpretadas e implementadas.[4]

Em Mateus 25: 14-28 existe uma longa parábola na qual Deus dá quantidades diferentes de moedas (chamadas “talentos”) a vários servos. Alguns deles investem o dinheiro e devolvem mais do que Deus lhes deu. Entretanto, a pessoa a quem Deus deu apenas uma dessas moedas é descrita no verso 18:

“Mas o que recebera um foi e cavou na terra e escondeu o dinheiro do seu senhor.”

Quando Deus chamou de volta Seus servos e perguntou o que tinham feito com o dinheiro, o que recebeu apenas um talento afirmou a Deus:

“Chegando por fim o que recebera um talento, disse: Senhor, eu te conhecia, que és um homem duro, que ceifas onde não semeaste, e recolhes onde não joeiraste; e, atemorizado, fui esconder na terra o teu talento; eis aqui tens o que é teu.” (Mateus 25: 24-25).

O Senhor então o repreendeu severamente:

“Ao que lhe respondeu o seu senhor: Servo mau e preguiçoso, sabias que ceifo onde não semeei, e recolho onde não joeirei? Devias então entregar o meu dinheiro aos banqueiros e, vindo eu, tê-lo-ia recebido com juros. Tirai-lhe, pois, o talento e dai ao que tem os dez talentos.” (Mateus 25:26-28).

Ao comentar sobre essa passagem a Bíblia de Estudos de Genebra, afirma:

Os banqueiros que têm suas lojas ou filiais no exterior, onde emprestam dinheiro a juros. A usura ou empréstimo de dinheiro a juros é estritamente proibido pela Bíblia (Êxodo 22:25-27; Deuteronômio 23:19-20). Mesmo uma taxa tão baixa quanto um por cento foi proibida (Neemias 5:11). Esse servo já tinha contado duas mentiras. Primeiro, disse ao mestre que era um homem austero ou severo. Era uma mentira porque o senhor era misericordioso e gracioso. Depois chamou seu mestre de ladrão porque colheu onde não semeou. Finalmente o mestre disse a ele sarcasticamente: por que não acrescenta insulto à injúria e empresta dinheiro a juros para poder chamar seu mestre de “usurário” também! Se o servo tivesse feito isso, seu mestre seria responsável pelas ações e culpa de usura do servo.

Com base no Velho e Novo Testamentos, os primeiros concílios da igreja proibiram os juros. Por fim, todos os cristãos foram proibidos de se envolverem com juros, não apenas o clero. Os patriarcas cristãos, como São Tomás de Aquino[5], lidaram com a questão dos juros com algum detalhe. “No Decreto de Graciano, como subsequentemente no Terceiro Concílio de Latrão (1179), um cânone determinou que “usurários manifestos não deviam ser admitidos para comunhão, nem receberem enterro cristão, se morressem em seu pecado.” [6] O Quarto Concílio de Latrão de 1215 condenou a prática, mas a permitiu para os judeus. Os católicos permaneceram firmemente contra os juros até o século 19. Martim Lutero do século 16, o líder protestante, também condenou a usura mas, alega-se, que a permitiu sob o pretexto da fraqueza humana.[7] Calvino, mais do que ninguém, foi o começo de uma visão mais suave em relação aos juros entre os líderes cristãos. Lentamente a legislação civil se libertou da Lei Canônica e os juros começaram a ser institucionalizados com o passar do tempo.

Os pensadores judaico-cristãos não foram os únicos que condenaram os juros. De fato, os filósofos gregos também adotaram uma visão muito negativa sobre os juros. Aristóteles e outros sábios gregos de destaque condenaram os juros. O famoso economista austríaco Eugen von Böhm von Bawerk (também conhecido como Boehm-Bawerk), escreveu em seu importante trabalho Capital and Interest(Capital e Juros):

As expressões hostis do mundo antigo, que não eram poucas, consistem em parte de um número de atos legislativos que proibiam cobrar juros e em parte à declaração casual de filósofos como Platão, Aristóteles, os dois Catão, Cícero, Sêneca e Pantus, etc. Os filósofos gregos consideravam o dinheiro como um meio de troca e, consequentemente, negavam a produtividade de empréstimos. Um pedaço de dinheiro não pode gerar outro pedaço, era a doutrina de Aristóteles. A conclusão óbvia é que os juros eram injustos.[8]

Inicialmente o Império Romano também proibiu a cobrança de juros. Com o surgimento das classes mercantis isso foi amenizado um pouco, mas ainda existiam restrições severas sobre cobrança de juros e também leis para proteger devedores.

O personagem Shylock de Shakespeare em O Mercador de Veneza (escrito pouco antes do ano 1600) demonstra o quanto os agiotas eram desprezados. Levanta-se a questão óbvia de como os juros passaram de um ato desprezado e proibido a socialmente aceitável e prática institucionalizada no Ocidente.

 

 

 


Footnotes:

[1] Todas as citações da Bíblia, comentários bíblicos ou dicionários bíblicos do artigo original em inglês são, a menos que mencionado de outra forma, da The Bible Collection CD (ValueSoft, 2007).

[2] Cf., Salmos 15:1-5; Ezequiel 18:5-9 e Provérbios 28:8. O Velho Testamento também verifica que embora os judeus fossem proibidos de cobrar juros, com frequência eram culpados de recaírem nesse ato. Ver Neemias 5:6-7 e Ezequiel 22:12.

[3] Citado de Abdelmoneim El-Gousi, “Riba, Islamic Law and Interest” (Riba, Lei Islâmica e Juros”, em tradução livre) (Dissertação de Ph.D., Temple University, 1982), p. 113.

[4] Esses ditos representam um código perfeccionista, um ideal impossível, “ética interina” ou alguma outra coisa? Os sábios cristãos não foram capazes de chegar a um acordo sobre a resposta a essa questão. Cf., Lisa Sowle Cahill, Love Your Enemies: Discipleship, Pacifism, and Just War Theory (“Ame Seus Inimigos: Discipulado, Pacifismo e a Teoria da Guerra Justa”, em tradução livre) (Minneapolis, MN: Fortress Press, 1994), p. 27.

[5] Uma análise dos pensamentos de Aquino sobre juros podem ser encontrados em Economics, Ethics and Religion: Jewish, Christian and Muslim Economic Thought (“Economia, Ética e Religião: Pensamento Econômico Judaico, Cristão e Muçulmano”, em tradução livre) de Rodney Wilson (Washington Square, Nova Iorque: New York University Press, 1997), pp. 82-85. Na realidade, entretanto, como muito do pensamento cristão sobre a guerra justa, Aquino foi fortemente influenciado pelo pensamento pré-cristão grego e romano.

[6] El-Gousi, p. 114.

[7] Cf., Anwar Iqbal Qureshi, Islam and the Theory of Interest (“Islã e a Teoria dos Juros”, em tradução livre) (Lahore, Paquistão: Sh. Muhammad Ashraf Publications, 1974), p. 8.

[8] Boehm Bawerk, Capital and Interest (“Capital e Juros”, em tradução livre) (1959), Vol. I, pp. 10-11, citado de Afzal-ur-Rahman, Economic Doctrines of Islam (“Doutrina Econômica do Islã”, em tradução livre) (Lahore, Paquistão: Islamic Publications Limited, 1976), vol. III, p. 11. Ver também Qureshi, p. 6; El-Gousi, p. 114.

 (parte 4 de 8): Proibição a Justificação

Com o tempo foi considerado que a proibição dos juros era um dogma religioso que precisava ser abolido. Não se podia mais permitir que a religião conduzisse a economia. Esse certamente foi o sentimento expresso pelo famoso economista e historiador Richard Tawney quando afirmou: “Todo o esquema do pensamento medieval tentou tratar dos assuntos econômicos como uma parte de hierarquia de valores abrangendo todos os interesses e atividades das quais o ápice era a religião.” [1] Ao mesmo tempo, entretanto, parece que a mudança que ocorreu na atitude não foi baseada puramente em razões econômicas. Lawrence Dennis afirmou:

Aristóteles, os canonistas católicos romanos, o Torá judaico. . . Todos proibiram empréstimos a juros, ou denunciaram juros como usura. Empréstimos a juros aumentaram nos séculos medievais para acomodar príncipes que precisavam e não podiam levantar dinheiro suficiente para a guerra ou outros propósitos públicos. Contrariamente às idéias atuais, os empréstimos não foram originalmente desenvolvidos como forma de financiar o comércio. Os mercadores venezianos, holandeses, hanseáticos, britânicos e outros até o século 17 financiavam suas operações com as contribuições de capital de sócios. [2]

Dennis afirma ainda:

Os canonistas católicos não desaprovavam os lucros em empreendimentos comerciais, aluguel pelo uso da terra ou venda de frutos da terra ou outro capital.Desaprovavam os juros sobre dinheiro emprestado. Durante o período da Reforma os juros começaram a ser racionalizados principalmente pelos protestantes de forma a contornar as objeções canonistas. A Igreja Católica nunca abandonou sua atitude em relação à usura, mas aquiesceu ou tolerou os empréstimos com base em certas suposições. A aquiescência moral pela Igreja Católica e o endosso positivo pelos comerciantes calvinistas passaram a ser incorporados nas leis, pensamentos e padrões de comportamento de sociedades modernas. [3]

As racionalizações a que Dennis se refere podem ser vistas em vários comentários sobre a Bíblia. Embora os textos do Velho Testamento sejam muito claros em sua condenação aos juros, não impediu sábios posteriores de virtualmente ignorarem ou aparentemente distorcerem essa proibição. [4] Por exemplo, o Henry’s Concise Commentary (Comentário Conciso de Henry) para Levítico 25:37 afirma:

E até agora essa lei continua válida, mas nunca pode ser pensada como válida onde dinheiro é tomado emprestado para compra de terras, negócios ou outras melhorias; porque é razoável que o emprestador compartilhe com o tomador do empréstimo no lucro. A lei aqui é pretendida para o alívio do pobre, para quem às vezes o empréstimo equivale a uma caridade.

Essa explicação é refutável uma vez que os juros nunca tiveram relação com o emprestador compartilhar com o tomador de empréstimo no lucro. Se fosse o caso, muitos dos males dos juros seriam removidos. Da mesma forma, no comentário de Jameison-Fausset-Brown se lê:

 “A usura era severamente condenada (Salmos 15:5; Ezequiel 18:8,17), mas a proibição não pode ser considerada aplicável à prática moderna dos homens em negócios, tomar emprestado e emprestar a taxas legais de juros.”

Como o ato foi de severamente condenado a não ser passível de aplicação às “práticas modernas dos homens em negócios” Nenhuma lógica ou prova é fornecida para essa transição súbita. Da mesma forma, em seu comentário sobre Deuteronômio 23: 19-20, o comentário Jameison-Fausset-Brown afirma:

“Não emprestarás com usura a teu irmão. . . … mas somente ao estrangeiro– os israelitas viviam em uma sociedade simples e eram encorajados a se emprestar mutuamente de maneira amigável, sem qualquer esperança de ganho. Mas o caso era diferente com os estrangeiros, que, engajados em comércio, tomavam emprestado para aumentar seu capital e podia-se razoavelmente esperar que pagassem juros sobre seus empréstimos.”

De novo, nenhuma evidência é dada para essa proposição. (Parece que os textos sagrados não são capazes de se expressar adequadamente.) De fato,mesmo um economista famoso estava disposto a fornecer comentário bíblico: Paul Samuelson escreveu em seu clássico livro sobre economia: “As declarações bíblicas contra os juros e usura claramente se referem a empréstimos feitos para consumo, ao invés de com propósito de investimento.” [5]

Com a remoção de objeções “escolásticas”, passou a ser o papel da economia justificar o pagamento de juros. Isso é mais difícil do que parece. Haberler estava muito certa quando declarou:

A teoria dos juros tem sido um ponto fraco nas ciências econômicas por um longo tempo e a explicação e a determinação das taxas de juros continuam a dar margem para mais divergências entre economistas do que qualquer outro ramo da teoria econômica geral.[6]

Na realidade, entre os economistas “não existe uma única teoria de juros adequada e aceita de forma geral que possa dar uma explicação sólida da origem e causa dos juros.” [7]

 

 


Footnotes:

[1] Citado em Qureshi, p. 7.

[2] Citado em Qureshi, p. 167.

[3] Citado em Qureshi, p. 167.

[4] Muitos dos seguidores dessas religiões esperam que os muçulmanos sigam seus passos, embora seus argumentos não pareçam razoáveis ou lógicos. A vasta maioria dos sábios muçulmanos em todo o mundo tem, até hoje, evitado essa manipulação e adulteração claras com os textos do Alcorão e dos hadiths.

[5] Paul A. Samuelson, Economics (Economia) (Nova Iorque: McGraw-Hill Book Company, 1976), p. 605. Ênfase acrescentada.

[6] Haberler, Prosperity and Depression (“Prosperidade e Depressão”, em tradução livre) (1ª edição), p. 195. Citado de Afzal-ur-Rahman, p. 9.

[7] Afzal-ur-Rahman, p. 9.

(parte 5 de 8): Explicações e Teorias

O mero excesso de opiniões tentando explicar a existência de juros e justificar seu pagamento – acompanhado por críticas críveis de todas essas opiniões por economistas respeitados e de destaque[1] - deve ser um sinal para todos de que algo não está muito certo.  Na história do pensamento econômico, podem-se encontrar as seguintes teorias justificando os juros (entre outras):

(1)  As Teorias “Sem Plausibilidade” (como Boehm-Bawerk as chama): foram desenvolvidas por Adam Smith, Ricardo e outros economistas.  Essa teoria tem muitas falhas, incluindo confundir juros com lucro bruto sobre o capital.  Ricardo ainda determinou todo o valor do capital ao trabalho - mas de alguma forma deixou de notar que nunca o trabalho recebia o pagamento pelo dito valor.

(2)  As Teorias da Abstinência: esses tipos de teorias aparecem de vez em quando.  Os economistas descobriram que “abstinência” pode não ser uma boa palavra para se usar[2] e com frequência a substituem por outros termos, como “espera” (a la Marshall).  Os juros são, em essência, a retribuição que se recebe por “esperar” ou “se abster” de consumo imediato.  Essa teoria fracassou porque parece pensar que poupar é a única função dos juros, que se verificou não ser verdadeiro.

(3)  Teorias de Produtividade: os proponentes dessa teoria vêem produtividade como inerente ao capital e, consequentemente, os juros são simplesmente o pagamento por essa produtividade.  A teoria, como apresentada por Say, supõe que o capital produz um valor excedente, mas, de novo, não existe prova para dar apoio a essa alegação.  O máximo que se pode alegar é que algum valor foi criado, um pagamento ao capital, mas não se pode provar que o valor excedente foi criado, a essência de sua alegação de que os juros se justificam.  Claro, essas teorias ignoram completamente os fatores monetários ao analisarem os juros.

(4)  Teorias de Uso: “Boehm rejeitou a validade da suposição de que ao lado de cada bem de capital havia um “uso”, que era um bem econômico independente possuindo valor independente.  Ele enfatizou ainda que ‘em primeiro lugar, simplesmente não existe algo como um uso independente de capital’ e, consequentemente, não pode existir um valor independente, nem sua participação originar o ‘fenômeno do valor excedente.’  Supor esse uso é criar uma ficção injustificável que se contrapõe a todos os fatos.”[3]

(5)  Teorias de Remuneração: esse grupo de economistas vê os juros como a remuneração do “trabalho realizado” pelo capitalista.  Embora apoiada por economistas ingleses, franceses e alemães, talvez essa opinião não precise de comentários.

(6)  As Teorias Ecléticas (combinação de teorias anteriores, como a de Produtividade e Abstinência): Afzal-ur-Rahman escreve:

Essa linha de pensamento parece revelar um sintoma de insatisfação com a doutrina de juros como apresentada e discutida pelos economistas do passado e do presente.  E, como nenhuma teoria sobre o assunto é em si considerada satisfatória, as pessoas têm tentado encontrar uma combinação de elementos de várias teorias para encontrar uma solução satisfatória do problema.[4]

(7)  Teoria Moderna da Frutificação: Henry George foi o desenvolvedor dessa teoria, mas ela nunca teve peso suficiente para ter muitos seguidores (se é que houve algum).

(8)  Teoria da Abstinência Modificada: outra teoria singular proposta por Schellwien; nunca teve muito impacto.

(9)  A Teoria Austríaca (Teoria da Preferência pelo Tempo ou Ágio[5]): essa é a opinião que o próprio Boehm-Bawerk endossa.  De acordo com essa teoria, os juros surgem “de uma diferença em valor entre os bens presentes e futuros.” Cassel criticou essa teoria em detalhes.  Resume-se a uma teoria “de espera” extravagante.

(10)    Teorias Monetárias (Teoria dos Fundos Emprestáveis, Teoria da Preferência por Liquidez, Teoria dos Estoques e Fluxos, Abordagem da Preferência por Bens): mais recentemente os economistas tentaram introduzir e enfatizar a influência de fatores monetários na questão dos juros.  Na realidade, entretanto, a ênfase aqui começa a ser trocada de por que os juros são pagos para o que determina a taxa predominante de juros.  “De acordo com Robertson, os juros na teoria da preferência pela liquidez são reduzidos a nada mais que um prêmio de risco contra flutuações em relação às quais não temos certeza.  Deixa os juros em suspenso, em um vácuo, por assim dizer, havendo juros porque existem juros.”[6]  Críticas semelhantes têm sido feitas a outras opiniões nessa família de teorias.

(11)    Teoria da Exploração: incidentalmente os economistas socialistas sempre consideraram os juros como nada além de exploração.  Deve ser lembrado que os “fundadores” da teoria capitalista, Adam Smith e Ricardo, acreditavam que a fonte de todo o valor é o trabalho.  Se isso é verdade, então todos os pagamentos devem ser feitos ao trabalho e os juros não são nada além de exploração.

Em dois trechos Afzal-ur-Rahman forneceu excelentes conclusões referentes a essas diferentes teorias de juros.  Ele afirma:

Um estudo crítico do desenvolvimento histórico do fenômeno dos juros demonstrou que os juros são pagos a um fator independente da produção, que pode ser chamado de espera ou adiamento ou abstinência ou uso, etc.  Mas nenhuma dessas teorias respondeu ou provou por que os juros são pagos ou devem ser pagos a esse fator.  Alguns apontam para a necessidade de espera; outros para a necessidade de abstinência, de adiamento; mas nenhuma dessas explicações responde à questão.  Nem mera necessidade de espera ou adiamento ou abstinência, nem mero uso ou produtividade de capital é suficiente para provar que os juros são um pagamento necessário para o emprego do capital na produção.  Além disso, essas teorias não responderam como um fator variável pode determinar um fator fixo como a taxa de juros.  Como essa teoria pode ser válida ou defensável?[7]

Posteriormente ele escreve:

As teorias monetárias, como teorias de produtividade marginais, não tentaram responder a questão: por que os juros devem ser pagos?  Ou por que os juros são pagos?  Simplesmente ignoraram essa questão e buscaram refúgio na teoria de valor.  Dizem como todas as outras coisas, que o preço do capital é determinado pela demanda e oferta de dinheiro.  Mas parece que se esqueceram da diferença básica entre os dois problemas. A teoria de valor é um problema de troca, enquanto que a teoria dos juros é um problema de distribuição.  Tanto os fundos emprestáveis quanto as teorias de preferência pela liquidez são basicamente teorias de oferta e demanda de juros e os explicam com referência a oferta e demanda por fundos emprestáveis e dinheiro, respectivamente.  Mas não dão qualquer justificativa para o fenômeno dos juros.  Mesmo que o capital tenha direito a uma compensação adequada como recompensa por sua contribuição à criação de riqueza, “somente pode pegar sua parte do aumento da riqueza nacional na medida de sua contribuição a ela.  Não se pode permitir que fuja com seu pedaço de carne, determinado antecipadamente e sem relação com a realidade da produção”.[8]  De acordo com Boehm Bawerk, o estudo de todas essas teorias revela o desenvolvimento de três conceitos básicos essencialmente divergentes do problema dos juros.”  Um grupo, os representantes da teoria da produtividade, trata o problema dos juros como um problema de produção.  Os representantes socialistas das teorias da exploração tratam o problema dos juros como puramente um problema de distribuição; enquanto que o terceiro grupo, que apóia as teorias monetárias, busca na teoria dos juros o problema de valor.  Não há dúvida de que todas essas teorias foram confundidas pela magnanimidade e difusão do fenômeno dos juros, evitando a questão principal que é por que os juros devem ser pagos.  De fato, despenderam todas as suas energias em solucionar o problema da espera, da abstinência, da produtividade, do “valor do trabalho” ou “da determinação de valor” e não disseram nada sobre a origem ou justificativa da instituição dos juros.[9]

 

 


Footnotes:

[1] Virtualmente qualquer livro sobre a história do pensamento econômico fornece uma análise das justificativas dos juros e também suas críticas. Uma referência útil é Mark Blaug,Economic Theory in Retrospect (“Teoria Econômica em Retrospecto”, em tradução livre) (Cambridge: Cambridge University Press, 1978). O clássico Capital and Interest (Capital e Juros) de Boehm-Bawer é uma forte acusação contra as primeiras teorias de juros, embora sua própria teoria, com certeza, não esteja livre de defeitos.  Boehm constatou que as primeiras teorias eram inconsistentes e contraditórias e, também, que não forneceram uma teoria completa de juros, explicando por que é pago e o que determina sua taxa. Ver também Qureshi, pp. 11-39; Afzal-ur-Rahman, pp. 9-48.

[2] A teoria da abstinência de Senior “foi devidamente ridicularizada por um escritor socialista, Lasalle, que destaca: ‘O lucro do capital é o “pagamento da abstinência”. Expressão feliz e que não tem preço. Os milionários ascéticos da Europa como indianos penitentes ou santos, se apóiam sobre uma perna cada qual em sua coluna, com braços extenuados, corpos oscilantes e rostos pálidos, segurando um prato para coletar pagamentos por sua abstinência. No meio deles, destacando-se de todos os seus companheiros, como penitente e asceta principal, está o Barão de Rothschild.’” Qureshi, p. 17.

[3] Afzal-ur-Rahman, p. 23.

[4] Afzal-ur-Rahman, p. 30.

[5] “Ágio” é o prêmio que se está disposto a pagar pelos bens no presente, comparado com ter os mesmos bens no futuro.

[6] Afzal-ur-Rahman, p. 44.

[7] Afzal-ur-Rahman, pp. 37-38.

[8] Afzal-ur-Rahman citou esse Ahmad, The Economics of Islam.

[9] Afzal-ur-Rahman, pp. 46-47.

(parte 6 de 8): Os Males dos Juros I

Os Males dos Juros

Os economistas podem tentar apresentar várias justificativas para o pagamento de juros, mas o teste real é estudar os efeitos que os juros têm.  É importante destacar que quando algo é proibido por Deus, não significa que não exista absolutamente nada benéfico no item ou prática proibida.  De fato, pode-se encontrar algo benéfico até em itens proibidos.  Por exemplo, Deus diz no Alcorão sobre o álcool:

“Interrogam-te [Ó Muhammad]a respeito da bebida inebriante e do jogo de azar;  Dize: Em ambos há benefícios e malefícios para o homem; porém, os seus malefícios são maiores do que os seus benefícios.” (Alcorão 2:219)

Assim, o ponto essencial não é se existe algo benéfico em determinada coisa, mas se o prejuízo supera seu benefício.  Portanto, os economistas podem ser capazes de encontrar uma justificativa para pagamento de juros, mas isso definitivamente não supera os danos que os juros causam, como veremos nessa seção.

Mesmo que os juros fossem considerados algum tipo de pagamento a um fator de produção, eles têm características únicas que os destacam de pagamentos a qualquer outro fator de produção.  Devido a essa natureza única, levam a alguns resultados perturbadores.

Primeiro, os juros levam a uma distribuição desigual de renda.  Isso pode ser visto adotando o exemplo de três pessoas.  Suponha que existem três pessoas que consomem todo seu rendimento em um determinado ano e ainda assim um deles começa com $ 1.000 em economias, um segundo com $ 100 e um terceiro com zero.  A uma taxa de 10% de juros ao ano, no final do ano a primeira pessoa terá $ 1.100, a segunda $ 110 e a terceira terá zero em suas respectivas contas.  Se o mesmo cenário acontecer no ano seguinte, a primeira pessoa terá $ 1.210, a segunda $ 121 e a terceira terá zero.  Pode-se ver como a distribuição entre eles aumenta todo ano, mesmo entre os que têm suas próprias economias.  Esse cenário piorará se a pessoa mais rica for capaz também de aumentar suas economias.  Suponha que acrescenta mil no final de cada ano.  Terá 1.100 no final do primeiro ano, acrescenta $ 1.000 e continua com seus 10% de juros e terá $ 2.310 no final do segundo ano e assim por diante.  Seria uma coisa se esse dinheiro fosse pago devido algum fator positivo de produção, mas na realidade esse argumento não pode ser usado nesse caso.  O dinheiro que as pessoas ganham através dos juros pode ter sido desperdiçado, perdido ou até roubado pelas pessoas que o tomaram emprestado, mas ainda assim se teria que pagar os juros.  Pode ter sido investido em um projeto completamente fracassado e, consequentemente, não produziu nada.  Mas nada disso importa, porque os juros têm que ser pagos independente de se aquele “fator de produção” produz alguma coisa ou não.  Esse é simplesmente um dos aspectos únicos de dinheiro e pagamentos ao dinheiro.  Ninguém pode argumentar que é justo e seus resultados são a distribuição desigual de dinheiro.

Além disso, a distribuição de renda se torna cada vez mais distorcida com o passar do tempo.  Pode-se imaginar alguns indivíduos lidando com milhões, enquanto outros lidam com centenas ou milhares.  Essa disparidade nos rendimentos de seus juros será de fato cada vez maior cada ano.  Em outras palavras, levará a uma situação na qual o rico fica cada vez mais rico e o pobre fica relativamente mais pobre.  Note que os que têm dívidas e pagam juros que crescem a cada ano não foram adicionados à equação.  No caso deles os juros continuam a crescer e os seus rendimentos são consumidos mais e mais pelos juros, exacerbando ainda mais a distribuição desigual de renda.

Pode-se perguntar por que a distribuição desigual de renda deve ser considerada um assunto importante.  Além dos efeitos psicológicos sobre os pobres, especialmente considerando os anúncios da mídia de massa que enfatiza a vida boa e a necessidade de consumir, existem efeitos muito importantes sobre o mercado como um todo.  Em uma economia de mercado a produção girará em torno daqueles que têm dinheiro para pagar pela produção, independente do quanto outros bens podem ser necessários para a sociedade.  Se o rico deseja, exige e está disposto a pagar muito dinheiro por utilitários e veículos a gasolina, eles serão produzidos (independente do quanto os conservacionistas podem reclamar).  À medida que a distribuição de renda se torna cada vez mais distorcida, mais e mais recursos serão devotados para as demandas das classes mais ricas.  Uma vez que os recursos são, de certa forma, “fixos”, isso significa que menos e menos será devotado às necessidades das classes mais pobres.  Além disso, os menores recursos devotados aos bens que os pobres consomem reduzem a oferta e elevam os preços desses bens, prejudicando ainda mais a situação econômica geral dos pobres.  Por exemplo, pode-se encontrar várias clínicas médicas cuidando dos ricos (que podem pagar esses tratamentos) mesmo que não os necessitem, como os vários locais para cirurgia plástica cosmética e assemelhados.  Ao mesmo tempo, é muito difícil encontrar clínicas para os pobres e que atendam suas necessidades básicas.  Se pudessem pagar mais por esses serviços essenciais em uma economia de mercado, com certeza se encontraria mais desses tipos de clínicas, mais recursos seriam devotados para os necessitados com um preço mais barato a longo prazo para aquilo que precisam.  (Além disso, essa distribuição distorcida também tem fortes implicações para a saúde da democracia; entretanto, essa discussão está além do escopo desse trabalho.)

Em acréscimo, o fardo dos juros sobre os pobres que se endividam os coloca em uma situação na qual não podem avançar social ou economicamente, ampliando a lacuna entre ricos e pobres.  A dívida em si é uma situação difícil para qualquer indivíduo.  Entretanto, são os pagamentos de juros que fazem das dívidas um alvo em movimento, muitas vezes um que o indivíduo simplesmente não consegue acompanhar.  É um fator de produção espúrio, mas funciona para permitir ao rico ficar mais rico, enquanto coloca um grande fardo sobre aqueles que se endividam.  Talvez todos os leitores estejam familiarizados com o fato dos Estados Unidos, o país mais rico no mundo, ter se tornado uma sociedade devedora.  Isso afligiu não apenas as classes mais baixas, mas muitos da classe média também.  Alguns tristes indivíduos não percebem que se pagarem somente o mínimo em suas faturas de cartão de crédito, por exemplo, nunca pagarão sua dívida.[1]  Mas, claro, são os mais pobres que são atingidos de forma mais dura.  De fato, o sistema se volta contra eles uma vez que quanto mais pobre um indivíduo é, pior é sua classificação de crédito e mais alta é a taxa de juros que será forçado a pagar.   Income, Debt and the Quest for Rich America: The Economic Tale of Small and Mid-Sized US Cities (“Renda, Débito e a Busca pela América Rica: A Lenda Econômica das Cidades Americanas de Pequeno e Médio Porte”, em tradução livre) de Mirza Shahjahan é um estudo de como a dívida e o fardo de seus juros correspondentes afligiu muito da “média América”.[2]  A má situação dos fazendeiros de pequeno porte forçado a recorrerem a empréstimos devido aos preços mais baixos de sua produção foi bem documentada.  Muitos deles empenharam seus preciosos pertences ou perderam suas fazendas que tinham estado em suas famílias por gerações simplesmente devido ao pagamento de juros que não puderam acompanhar.  Shahjahan constatou que alguns dos pobres pagam mais de 15% de seu rendimento anual somente em juros (com a maioria pagando entre 8% e 12%) – sem mencionar o fardo de ligações e ameaças de seus credores que os pobres recebem com frequência.  Nas conclusões Shahjahan afirma:

Os fardos monetários e reais da dívida mantiveram muitos devedores em uma luta de uma vida inteira para sanar suas dívidas.  O tamanho médio da dívida de lares endividados para o período 1990-1993 foi $32.493, atingindo quase 100% da renda desses lares.  Nossa estimativa da dívida per capita de cada família para 1990-1993 chega a $12.571. Uma dívida dessa magnitude, combinada com um emprego temporário e baixa renda, pode ser deprimente e produzir condições psicológicas esmagadoras.

Alguns pagamentos de juros excedem 15% de seus rendimentos.  Esse custo alto de juros tem sido uma fonte de erosão significativa do rendimento familiar...

A maioria das residências – milhões em número – em cidades de médio porte lutam diariamente para atender suas necessidades básicas de vida.  Milhares deles não conseguem prover uma vida decente para suas famílias ou pagar pela educação superior de seus filhos.  Vivem e morrem em dívida.  Essa situação os faz sentir que não vivem uma vida plena...

Essas famílias são pegas em uma situação de servidão econômica na qual as rotas de fuga mais óbvias estão bloqueadas por forças institucionais.   Adquirir habilidades ou educação superior pode ser a chave que abre o caminho para a oportunidade real, mas educação superior é cara e fora do alcance da maioria das famílias nessas cidades.  Essas famílias não têm oportunidade de se sobressaírem e não se qualificam para as posições que desejam.  Essa é a natureza do sofrimento das famílias das classes trabalhadoras nas cidades de pequeno e médio porte de nossa nação.[3]

 

 


Footnotes:

[1] Shahjahan nota: “A maioria das famílias não está de fato consciente do nível de erosão de sua renda que resulta dos altos pagamentos de juros das dívidas pendentes.” Mirza Shahjahan,Income, Debt and the Quest for Rich America: The Economic Tale of Small and Mid-Sized US Cities (“Renda, Débito e a Busca pela América Rica: A Lenda Econômica das Cidades Americanas de Pequeno e Médio Porte”, em tradução livre) (Beltsville, MD: Writers’ Inc.International, 2000), p. 103.

[2] Shahjahan, passim.

[3] Shahjahan, pp. 224-236.

(parte 7 de 8): Os Males dos Juros II

A um nível internacional, a situação é muito mais devastadora e perigosa.  Não há dúvida que quando vemos de uma perspectiva internacional, os juros matam pessoas.  O saneamento de dívidas de países menos desenvolvidos é tão grande que devem sacrificar necessidades básicas nutricionais e de saúde.  É assombroso pensar que números incontáveis de crianças morrem diariamente em países menos desenvolvidos devido à “ferramenta” do capitalismo moderno: juros.  Alguns países africanos são forçados a gastar mais com saneamento de dívidas do que gastam em saúde ou educação.[1]

Nesse contexto a PDNU (1998) previu que se a dívida externa dos 20 países mais pobres do mundo fosse perdoada, poderia salvar as vidas de 20 milhões de pessoas antes do ano 2000. Em outras palavras, isso significa que a dívida não cancelada foi responsável pelas mortes de 130.000 crianças por semana até o ano de 2000.[2]

Ken Livingston, prefeito de Londres, alegou que o capitalismo global mata mais pessoas por ano do que as que foram mortas por Adolf Hitler.  Culpou o FMI e o Banco Mundial pelas mortes de milhões devido às suas recusas em aliviar o fardo da dívida.  Susan George afirmou que a cada ano desde 1981 entre 15 e 20 milhões de pessoas morrem desnecessariamente devido ao fardo da dívida “porque os governos do Terceiro Mundo têm tido que fazer cortes em programas de água potável e de saúde para atender seus reescalonamentos de dívida.[3]

A dívida, com sua quantidade crescente de juros compostos, é perigosa para qualquer nação porque significa perda de soberania e controle.[4] Esse aspecto, não é por acaso.  Países menos desenvolvidos – especialmente suas elites e governantes corruptos – não estão isentos de culpa quando se trata da dívida que acumularam.  Ao mesmo tempo, se não fizerem empréstimos e se endividarem, definitivamente serão pressionados a fazê-lo.  Caufield destacou:

Assim tem sido com o Banco Mundial; operações de refinanciamento têm tido participação cada vez maior em suas operações de empréstimo.  O resultado tem sido um acúmulo de dívida dos tomadores de empréstimo do banco – e uma perda gradual da soberania também.  Nenhum credor está disposto a manter o refinanciamento para sempre sem exercer algum controle sobre a forma como o credor conduz seus negócios.  Antigamente os grandes poderes não hesitavam em usar força militar para submeter os devedores recalcitrantes às suas vontades.  Em seu ensaio clássico, “Débitos Públicos”, publicado em 1887, o economista americano Henry Carter Adams escreveu que “a concessão de créditos estrangeiros é o primeiro passo em direção ao estabelecimento de uma política externa agressiva e, sob certas condições, leva inevitavelmente à conquista e ocupação.”

A abordagem do banco aos seus devedores não é tão bruta.  Ao invés de enviar os fuzileiros navais, oferece aconselhamento sobre como os países devem gerir suas finanças, fazer suas leis, prover serviços ao seu povo e se conduzirem no mercado internacional.  Seus poderes de persuasão são grandes, devido à convicção universal de que se decidir levar ao ostracismo um tomador de empréstimo, todos os principais poderes nacionais e internacionais seguirão sua orientação.  Assim, através do empréstimo excessivo – nascido de uma inconsistência fundamental de sua missão – o banco tem aumentado seu próprio poder e destruído os dos seus tomadores de empréstimo.[5]

O agora famoso Confessions of an Economic Hit Man (“Confissões de um Assassino Econômico”, em tradução livre) [6] de John Perkins detalha intrigas econômicas contemporâneas.  Ao descrever seu trabalho de avaliar projetos, ele escreve:

O aspecto não mencionado de todos esses projetos era serem voltados para criar grandes lucros para os contratantes e fazer um punhado de famílias ricas e influentes nos países recebedores muito felizes, ao mesmo tempo em que asseguravam a dependência financeira de longo prazo e, consequentemente, a lealdade política de governos ao redor do mundo.  Quanto maior o empréstimo, melhor.  O fato de que o fardo da dívida colocado sobre um país privaria seus cidadãos mais pobres de saúde, educação e outros serviços sociais por décadas não era levado em consideração.[7]

O trabalho de Perkins foi seguido agora por A Game as Old as Empire: The Secret World of Economic Hit Men and the Web of Global Corruption (“Um Jogo tão Velho quanto o Império: O Mundo Secreto do Assassino Econômico e a Rede de Corrupção Global”, em tradução livre) editado por Steven Hiatt.[8] Hiatt escreve:

A dívida mantém o Terceiro Mundo sob controle.  Dependente de ajuda, reescalonamento e rolagem de dívidas para sobreviver - sem nunca de fato se desenvolver - tem sido forçado a reestruturar suas economias e reescrever suas leis para atenderem as condições estabelecidas nos programas de ajuste do FMI e às condições do Banco Mundial.[9]

A situação de dívida atual, com o papel principal que os juros desempenham, está potencialmente muito devastadora para o mundo como um todo.  Em Global Trends 2015 (Tendências Globais 2015) a CIA reconheceu:

O curso crescente da economia global criará muitos vencedores econômicos, mas não içará todos os barcos.  Criará conflitos internos e externos assegurando uma lacuna ainda maior entre vencedores e perdedores regionais do que a que existe hoje.  A evolução da globalização será árdua, marcada por volatilidade financeira crônica e um divisão econômica que se amplia.  As regiões, países e grupos deixados para trás enfrentarão estagnação econômica profunda, instabilidade política e alienação cultural.  Promoverão extremismo político, étnico, ideológico e religioso, junto com a violência que geralmente os acompanha.[10]

Noreena Hertz tem um excelente capítulo em seu trabalho The Debt Threat: How debt is destroying the developing world… and threatening us all (“A Ameaça da Dívida: Como a dívida está destruindo o mundo em desenvolvimento... e ameaçando a todos nós”, em tradução livre), delineando muitos dos perigos do débito maciço – e, novamente, que não seria tão maciço sem o sempre crescente aspecto dos juros – apresentam para o mundo hoje.  Ela detalha os perigos do extremismo, terrorismo, destruição de recursos naturais do mundo e mais.  Para citar apenas um aspecto, ela escreve:

O infame produto da dívida – pobreza, desigualdade e injustiça – também é utilizado para justificar e até legitimar atos de maior violência.  Poucas semanas após o ataque ao World Trade Center, o destacado comentarista africano Michael Fortin escreveu: “Temos que reconhecer que esse ato deplorável de agressão pode ter sido, pelo menos em parte, um ato de vingança da parte de pessoas desesperadas e humilhadas, esmagadas pelo peso da opressão econômica praticada pelas pessoas do Ocidente.” A linguagem de Fortin – “esmagado”, “opressão”, “desesperado”, “humilhado” – é deliberadamente evocativa.  E é manifestamente claro que existe uma audiência com quem essas palavras ressoam de maneira poderosa.[11]

Na realidade, existem ainda outros males relacionados aos juros que poderiam ser discutidos, mas os apresentados acima devem ser suficientes para os propósitos aqui.

 

 


Footnotes:

[1] Cf., Noreena Hertz.  The Debt Threat (“A Ameaça da Dívida”, em tradução livre (Nova Iorque: HarperBusiness, 2004), p. 3.

[2] Ali Mohammadi e Muhammad Ahsan, Globalisation or Reconolisation?  The Muslim World in the 21st Century (“Globalização ou Recolonização? O Mundo Muçulmano no Século 21”, em tradução livre) (Londres: Ta-Ha Publishers, Ltd. 2002), p. 38.

[3] Mohammadi e Muhammad Ahsan, p. 43.

[4] Mais uma vez, a simples remoção dos juros dessas dívidas faria maravilhas para aliviar a posição dos mais pobres do mundo. A quantidade de juros pagos por esses países pobres é astronômica. Caufield destacou: “Até 1978, um quarto de todo o dinheiro tomado emprestado pelos países do Terceiro Mundo não filiados à OPEC era usado para pagar juros sobre dívidas existentes. A situação era particularmente ruim na América Latina, onde a tomada de empréstimos dobrou entre 1976 e 1982, and 70 por cento dos novos empréstimos eram para pagar juros sobre as dívidas antigas... Por volta de 1982, a situação tinha se tornado realmente absurda. A América Latina devia centenas de bilhões de dólares ao ano e gasto tudo – mais – para manter os pagamentos de suas dívidas antigas.” Catherine Caufield, Masters of Illusion: The World Bank and the Poverty of Nations (“Mestres da Ilusão: O Banco Mundial e a Pobreza das Nações”, em tradução livre) (Londres, Inglaterra: Pan Books, 1996), p. 137.  Mesmo quando um “alívio na dívida” é concedido, os pagamentos são adiados, mas é exigido que os juros continuem a se acumular. De acordo com Gwynne, “Embora os bancos possam permitir que um país como a Polônia “reescalone” sua dívida – concedendo vinte anos para pagar ao invés de dez, por exemplo – os pagamentos de juros continuam. E são os juros que servem de apoio para os resultados do balanço de perdas e lucros do banco.” S. C. Gwynne, “Selling Money-and Dependency: Setting the Debt Trap,” (“Vendendo Dinheiro e Dependência: Estabelecendo a Armadilha da Dívida”, em tradução livre) em A Game as Old as Empire: The Secret World of Economic Hit Men and the Web of Global Corruption (“Um Jogo tão Velho quanto o Império: O Mundo Secreto do Assassino Econômico”, em tradução livre) editado por Steven Hiatt (São Francisco: Berrett-Koehler Publishers, Inc., 2007), p. 35.  Payer destacou esse fenômeno desde 1974, mas virtualmente nada foi feito para corrigi-lo. Ver Cheryl Payer,The Debt Trap: The International Monetary Fund and the Third World (“A Armadilha da Dívida: O Fundo Monetário Internacional e o Terceiro Mundo”, em tradução livre) (Nova Iorque: Monthly Review Press, 1974), p 46.

[5] Caufield, p. 336

[6] John Perkins, Confessions of an Economic Hit Man “Confissões de um Assassino Econômico”, em tradução livre) (São Francisco: Berrett-Koehler Publishers Inc., 2004), passim.

[7] Perkins, p. 15.

[8] Steven Hiatt, ed.  A Game as Old as Empire: The Secret World of Economic Hit Men and the Web of Global Corruption (“Um Jogo tão Velho quanto o Império: O Mundo Secreto do Assassino Econômico e a Rede de Corrupção Global”, em tradução livre) (São Francisco: Berrett-Koehler Publishers, Inc., 2007)

[9] Hiatt, p. 23.

[10] Citado de Hertz, p. 156.

[11] Hertz, p. 161.

(parte 8 de 8): A Solução Islâmica

A Solução Islâmica

A solução islâmica para a questão dos juros repousa em dois princípios básicos:

(1)  Se um indivíduo deseja emprestar dinheiro a outro para ajudá-lo, esse ato deve ser baseado em “princípios fraternais” e é absolutamente inaceitável cobrar quaisquer juros nesse caso.  Não se ajuda outro indivíduo colocando-o em um ciclo de dívidas no qual ele tem que pagar mais do que pegou emprestado.  Esse princípio se aplica também às relações internacionais islâmicas.  Se esse princípio importante fosse aplicado hoje, os países de fato “ajudariam” e dariam assistência aos outros países, ao invés de sugá-los em um padrão de dependência e endividamento.

(2)  Se um indivíduo deseja usar seu dinheiro para ganhar mais dinheiro, então deve estar disposto a colocar seu dinheiro em risco.  Em outras palavras, não pode garantir para si mesmo um retorno fixo (cuja quantidade continua a aumentar com o passar do tempo) independente do resultado do investimento para o qual seu dinheiro foi direcionado.  Se estiver arriscando seu dinheiro, merece alguma parcela dos lucros.  Entretanto, isso também significa que deve aceitar perdas se elas ocorrerem.  Esse é um sistema baseado em justiça.  Tem numerosos benefícios também.  Aquele que investe se preocupa com os resultados de seu investimento e não pode exigir seu “pedaço de carne” independente do que possa ocorrer com o devedor.

Essa solução islâmica funciona para indivíduos e também para a sociedade como um todo.  Os bancos são essencialmente intermediários financeiros.  Pegam dinheiro daqueles que o tem em excesso (poupança) e o entregam para os que precisam de dinheiro para investimentos.  Os juros não são necessários para esse sistema funcionar.  O banco e seus acionistas investem, ao invés de simplesmente emprestar, seus títulos e ações.  O dinheiro é posto em risco e o retorno dos acionistas será baseado nos lucros obtidos nos respectivos investimentos.   Sob circunstâncias normais de uma economia em crescimento, se o banco for grande o suficiente e diversificar seu portfolio, o banco tem um retorno positivo virtualmente “garantido” sobre o total de seus investimentos.  Assim, aqueles que investem seu dinheiro com o banco também receberão um retorno positivo sobre seu dinheiro sem ser garantido ou fixado antecipadamente.

Várias instituições financeiras “islâmicas” têm sido estabelecidas em todo o mundo hoje.  Foram estabelecidas com base no princípio de evitar os juros e algumas delas floresceram.[1]

Conclusões

Na maioria dos casos a “civilização moderna” decidiu dar as costas à Orientação Divina (principalmente devido à experiência no ocidente com o Cristianismo) e tem tentado construir seus próprios sistemas econômicos e políticos, leis internacionais e assim por diante.  Ao fazê-lo, entretanto, têm que admitir que estejam tentando fazer algo além de seus meios.  As ciências sociais são muito diferentes das ciências físicas.  Não existem laboratórios nos quais os humanos possam determinar o que podem ser os melhores resultados sob diferentes cenários (e até isso teria que supor que os humanos sempre reagirão da mesma forma sob as mesmas circunstâncias).

No campo da economia, a primeira coisa que pode vir à mente é o colapso das teorias do socialismo e comunismo.  Deve-se, entretanto, examinar bem o capitalismo e o quanto sua realidade está longe do que deveria ser.  Os primeiros teóricos capitalistas previram uma teoria que levaria ao “melhor de todos os mundos possíveis.”  Entretanto, suas teorias eram baseadas em suposições que nunca foram e nunca serão cumpridas.  Supuseram competição perfeita, conhecimento perfeito, livre mercado e assim por diante.  Se essas suposições são violadas, o que inevitavelmente acontece, elas não levam ao “melhor de todos os mundos possíveis.”  Ao invés disso, facilmente levam a um mundo de exploração, no qual o rico fica mais rico e o pobre fica mais pobre.  Uma das forças propulsoras por trás desse sistema é a institucionalização dos juros.

Deus abençoou os humanos com a orientação do Alcorão – um livro que foi detalhadamente preservado desde sua revelação.  Esse livro contém a orientação que a humanidade necessita para levar uma vida bem-sucedida tanto nesse mundo quanto no outro.  Não surpreende, então, que esse livro proíba e condene absolutamente os juros de forma muito severa.

 

 


Footnotes:

[1] Para mais detalhes sobre os trabalhos práticos e teóricos dessas instituições, ver El-Gousi, pp. 199-247; Frank E. Vogel e Samuel L. Hayes III, Islamic Law and Finance: Religion, Risk, and Return (“Lei Islâmica e Finanças: Religião, Risco e Retorno”, em tradução livre) (The Hague: Kluwer Law International, 1998), pp. 181-295.